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1.A – A brutal Devassa no território do Alto Douro

Adquiri, há alguns anos, num alfarrabista do Porto, o livro “Devassa a que mandou proceder Sua Majestade no território do Alto Douro pelo desembargador António de Mesquita e Moura [1771-1775] ” o qual por vezes, tomo nas mãos, para me inteirar das verdadeiras vontades do rei D. José, por intermédio do seu todo-poderoso Marquês de Pombal. Mas que nunca tive pachorra, para escalpelar até ao fim – são mais de mil folhas que constituiu o primeiro volume publicado dessa “Devassa…”! –  que agora comento, partilhando em forma de escrito, com os utilizadores deste sitio do Hotel Miracorgo .

 

“Devassa…”, um verdadeiro guião para um filme sobre a Região do Douro no século XVIII.

 

 Almocreves, taberneiros, trabalhadores rurais, proprietários, crianças, idosos e adultos, foram interrogados num processo de contornos brutais, aos olhos dos nossos dias. Não é apenas a dureza das penas a chocar-nos, mas a própria valoração dos crimes é de molde a causar-nos perplexidades várias. Assim, enquanto para aqueles que “dormem com mulheres órfãs ou menores que estão a seu cargo”, a pena era o “Degredo e pena pecuniária. Perdimento de ofício”. Quanto aos “hereges e apóstatas” era-lhes reservada a pena de “Morte natural cruel e infâmia. Confisco de bens”. Era outra a ordem das suas preocupações e valores: podia ser-se queimado vivo por ter sodomizado um gato, ou morrer na agonia do esquartejamento por defender uma doutrina contrária à da Igreja, enquanto violar uma menina dava direito a uma pena de degredo.

 

Mas para se compreender melhor esta brutal “Devassa…” vou socorrer-me do saber de António Braz de Oliveira e de Maria José Marinho que organizaram a obra e da apresentação de António Barreto, pilares fundamentais para a vinda a lume deste conjunto de manuscritos que, de todo, não queremos esconder, bem pelo contrário.

 

Como refere António Barreto não se trata de um “best-seller”, mas trata-se de um testemunho de enorme valor histórico, um verdadeiro guião para conhecer o módus vivêndi  de uma época. E se depois de 1983, estamos certos, poucos tiveram a pachorra de o ler, de fio a pavio, – como verbaliza o povo – o seu conteúdo, mas a exposição permite-nos entrar no desenvolvimento das várias peças como se dum verdadeiro filme se trata-se.

 

A data dos primeiros manuscritos, 1771, revela-nos que a ação se desenvolve em pleno período Pombalino, são prestados milhares de depoimentos, prestados por mais de duas mil pessoas (algumas repetiram a audição), todas elas originárias, residentes ou exercendo as suas atividades na região do Douro, tal como esta resulta das primeiras Demarcações Pombalinas.

 

Tal como dissemos acima, os inquiridos são das mais variadas profissões e condições sociais, de fidalgos a trabalhadores, de almocreves a cirurgiões, de padres a sapateiros, mas praticamente todos têm interesses na produção, no comércio ou no transporte de vinhos. A diversidade dos inquiridos permite um estudo interessante e uma perspetiva da estrutura da sociedade do Douro, ou mais propriamente dos grupos sociais ligados ao setor vinícola, que constituía, sem dúvida a mais importante atividade económica da região. Para além disso, em inúmeros domínios, são muitas as informações valiosíssimas: relações comerciais; métodos de controlo; preços; pesos e medidas; tecnologia da produção e do transporte; corografia e toponímia. Esta diversidade de pormenores e o fato de mais de duas mil pessoas se referirem aos mesmos assuntos, durante quase quatro anos, fazem o valor da “Devassa…”. Temos, pois, de saudar a decisão de a trazerem a lume.

 

Vamos, então, num primeiro passo, acompanhar a Memória Cronológica de Maria José Marinho, que nos auxilia a compreender no tempo a Região e, mais adiante, os seus protagonistas. Com a leitura do documento vamos construir um dicionário de palavras e expressões pouco conhecidas, seja por serem de natureza técnica ou regional, útil para o visitante compreender, também, o falar na Região do Douro.